Entre as muitas manias que a cinefilia me deu está a de sempre trazer alguma lembrança cinematográfica das minhas viagens. Minha primeira ida à Buenos Aires (que eu espero que não seja a última) ficou marcada na minha memória não apenas pelo céu mais lindo que já vi na vida, mas por um DVD que comprei pelo motivo mais bobo que há: a capa. El Desierto Negro era um mistério para mim. Nunca tinha ouvido falar nada sobre o filme e só tinha como referência o nome de seu diretor, Gaspar Scheuer, que havia integrado a equipe de som de uma produção que gosto muito, Estamos Juntos, de Toni Venturi. Com a caixinha na mão e contando os minutos para descobrir que surpresas ela me reservava, voltei para o Rio Grande do Sul. E fui presenteada com um universo muito próximo ao meu.
El Desierto Negro se impõe pela forma. Sua fotografia, assinada Jorge Crespo e premiada no Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires (Bafici), toda em preto e branco, dá uma atmosfera totalmente improvável para o pampa argentino e para sua figura mais mítica: o gaucho. Associar o homem de chapéu e bombacha ao verde infinito dos campos é algo natural, assim como pensar neste herói de outros tempos como alguém valente e prestativo. Mas Scheuer imprime, com ajuda de tecnologia e ótimo elenco, um clima de cinema noir no seu pampa. Ao invés de um protagonista simpático, El Desierto Negro tem como condutor de sua história um homem marcado pela quietude e que, das poucas frases que diz, mais da metade é tem como verbo a ponta da faca. O ator Guillermo Angelelli interpreta o Irusta, personagem de uma Argentina histórica com poucos sorrisos e auxiliado pela lente da câmera que, assim como o espectador, parece desconfiar o bastante para não fixar os olhos por muito tempo nele. Impossível não lembrar do poema de José Hernández, O Gaucho Martin Fierro, uma das obras mais populares da Argentina e que colaborou e muito para o imaginário da figura do gaucho. Só que a ode ao herói do Rio da Prata aqui flerta com o cinema fantástico, em especial em seu prólogo. A eterna sombra que parece perseguir o protagonista soa como um poncho extra sobre as costas, feito de solidão e perdas. O gaucho de El Desierto Negro vaga como um fantasma e nem mesmo a perseguição dos soldados parece alterar seu estado de espírito. Calado, sem demonstrar medo ou valentia exacerbada, ele parece saber o seu destino desde o primeiro minuto em que surge em cena. A chegada na casa de Carmem, que espera a chegada do marido com tanta ansiedade quanto o filho, que poderia trazer algum aconchego para a alma atormentada do gaucho, é mais um teto que um lar para ele. Há uma sensação de que o roteiro poderia ter sido melhor desenvolvido ao chegarmos ao final de El Desierto Negro, mas não é nada que estrague a experiência sensorial que é assisti-lo. Ficamos impregnados por aquele universo em tons de cinza e por aqueles personagens sem muita esperança de futuro. Se olhar o pampa já mexe com o coração desta gaúcha, depois de El Desierto Negro, vai ser ainda mais emocionante.
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Novembro 2022
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