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Por Marcus Guidoti*
Sha-Amun-Em-Su. Já ouviu falar? É o nome da múmia com a qual o vice-rei egípcio Ismail Paxá presenteou Dom Pedro II por ocasião de uma visita do nosso Imperador ao Egito. Talvez de ontem para hoje você já tenha ouvido falar nessa múmia, assim como no fóssil Luzia, ou no esqueleto da preguiça gigante, ou no meteorito Bendegó. Estas peças, únicas, históricas e de valor inestimável para a ciência, cultura e identidade nacional do Brasil foram perdidas no incêndio que destruiu o nosso maior museu, o Museu Nacional, na noite de ontem. Todas, com exceção do meteorito, que cumpriu sua "função" e resistiu ao calor mais uma vez. No entanto, uma parte importante dos 20 milhões de itens do acervo daquela coleção acaba não recebendo a devida atenção da mídia: as coleções científicas biológicas. Talvez por terem menos glamour, ou por não estarem na sua grande maioria expostas à visitação pública, estas coleções passam despercebidas. Mas elas também possuem uma importância grande o suficiente para merecerem o nosso luto, choro e indignação. Essas coleções são compostas por inúmeros espécimes biológicos amplamente utilizados em pesquisas científicas conduzidas no Brasil e no mundo, por brasileiros e estrangeiros. Eles são indiscutivelmente insubstituíveis por ser, cada um deles, único na informação que carrega. O local de coleta, a época do ano, o ano, o coletor, o método de coleta, a variação morfológica individual (ou pensou que são só os humanos que são diferentes entre si?), enfim: cada espécime é único – e só na coleção de artrópodes perdemos mais ou menos 5 milhões deles. Mas calma: piora. Ainda nestas coleções, temos aquilo que chamamos de espécimes tipos. Estes foram usados por quem descreveu as espécies originalmente. São moldes. E por serem moldes, precisam ser referenciados e consultados toda vez que alguém precisa estudar a identidade daquela espécie, seja em um trabalho de revisão que questiona a validade da mesma e seus limites de variação morfológica, ou em trabalhos de classificação, que tentam propor hipóteses de relacionamento entre estas espécies ou grupos de classificação maiores. A importância do tipo é tamanha que existem códigos de nomenclatura ditando as regras para lidar com eles. Uma coisa em comum destes códigos: como "espécie" é uma entidade/conceito um tanto vago, o nome que se dá a uma espécie, na verdade, se dá ao espécime (representante, indivíduo). Toda vez que alguém quiser verificar a validade daquele nome, precisa, portanto, verificar o espécime tipo atrelado ao nome. Deu para entender? Pois bem. Milhares destes tipos foram perdidos ontem, de inúmeros grupos taxonômicos diferentes, incluindo aquele em que eu trabalho há mais ou menos seis anos.
Eu, que vos falo, estou prestes a encerrar meu doutorado em sistemática e classificação de uma família de insetos chamada Tingidae. No Museu Nacional havia a coleção do outro brasileiro que trabalhou ativamente nesse tema e com esses bichos, chamado Oscar Monte.
Problema #1: o Monte morreu em 1945, e eu, o segundo a trabalhar com isso ativamente no Brasil, "surgi" em 2012 – logo, nunca tive a oportunidade e honra de conversar com ele, trocar uma ideia. Problema #2: ele foi um dos autores mais prolíficos na fauna Neotropical (leia-se: do México para baixo, nas Américas) e a coleção dele era recheada de tipos e de outros espécimes representando espécies que eu só encontrei lá - mesmo viajando/visitando/trabalhando nas maiores coleções do Brasil e do mundo. Bom, sem estes tipos e aquela coleção referência, deu para entender que não só o meu, mas o trabalho de qualquer pessoa nesse grupo ficará eternamente prejudicado, quase inibido, né? Agora imagina isso multiplicado pelos diversos grupos taxonômicos que estavam representados nas coleções perdidas no incêndio de ontem. Dói, né? Dor. Também angústia, sensação de impotência, raiva. A raiva só piora quando você percebe que um Ministro do Supremo Tribunal Federal, sozinho, custa anualmente cerca de 52 milhões de reais e a verba destinada à manutenção anual do Museu Nacional era de pouco mais de 500 mil reais – e que não era destinada integralmente há alguns anos. Culpa do atual governo? Ou de todos os últimos juntos, incluindo o atual? Eu vou com a opção B. Mas apontar dedos ou prometer a reconstrução (do insubstituível? Alguém me explica isso, por favor?) chega a ser um insulto a quem, de fato, apreciava esta instituição e o que ela representava para nós, pesquisadores e não pesquisadores, do Brasil e do mundo. Embora uma hora tenhamos que discutir isso e descobrir os culpados – e, de preferência, não votar neles ou no que eles representam – agora ainda é cedo demais. Desculpa. Pelo menos para mim. Me dêem um espaço, um tempinho, por favor. Acabo de perder algo importante e de forma trágica. Não apenas importante como entomólogo, especialista em Tingidae, mas também como brasileiro. O que aconteceu ontem com o antigo palácio imperial foi um dia histórico – negativo, mas histórico – para o nosso país. As perdas são imensuráveis e irreparáveis. A reconstrução é impossível, e não importa o que os ministros, prefeito e presidente estão falando. Falam muito, agiram pouco. Demorou. O palácio que estava acostumado a ser palco de dias históricos, como em 2 de setembro de 1822, quando a Imperatriz Leopoldina assinou o decreto da nossa Independência, está destruído. O 2 de setembro de ontem, no entanto, marcará nossa história por meio de um outro decreto, este não assinado, mas "lambido", "chamuscado" ou "carbonizado": o decreto da nossa negligência; do nosso fracasso em preservar o passado para que o futuro tenha a mesma oportunidade que tivemos de usufruí-lo e aprender com ele; do descaso com inúmeras gerações e milhões de horas de trabalho e dedicação das pessoas que trabalham e trabalharam para criar, manter e ampliar as coleções perdidas ontem; e do nosso desrespeito com a história, a cultura e a identidade de uma nação que ali restava preservada; e também da quase indiferença para com a Sha-Amun-Em-Su, por que não? Uma das poucas múmias ainda em seu sarcófago original no mundo todo, pedido do Dom Pedro II em pessoa, que não queria que ela fosse destruída. A Sha-Amun-Em-Su sobreviveu a uma mumificação. Uma viagem de navio. Sobreviveu a estudos e exames invasivos graças a um Imperador, apenas para ser queimada pelo descaso dos que hoje governam o seu povo. Hoje é dia de luto. *Marcus Guidoti é biólogo, entomólogo, pesquisador, quase PhD e viúvo do MNRJ
Enquanto acompanhava, atônito, o fogo consumir o prédio onde havia realizado diversos estudos – e cuja importância lhe era tão cara –, Marcus recorreu às redes sociais para desabafar e, ao mesmo tempo, informar a comunidade científica sobre a tragédia transmitida ao vivo em cadeia nacional.
Suas impressões chegaram a veículos como National Geographic, BBC Brasil e CBC News The National. Com a hashtag #LutoMuseuNacional, logo suas postagens renderam milhares de visualizações ao redor do mundo e foram replicadas por importantes nomes da ciência, como pesquisadores da NASA, a agência espacial americana, e de outras importantes instituições, dando uma ideia clara da comoção em nível global por causa do incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Confira os principais tweets:
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Novembro 2022
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